terça-feira, 19 de julho de 2011

Catarina e “seu” Tinho

Passarinho na gaiola
Fez um buraquinho,
Voou, voou, voou, voou.
E a menina que gostava
Tanto do bichinho,
“Chorou, chorou, chorou, chorou.”

Entra menina triste, com gaiola vazia na mão.
Homem já está na calçada, observando-a.
Ele carrega leves “tiques” de pássaro.

Homem- Tá chorando pq menina?
Menina- Meu canarinho fugiu...
Homem- Como ele chamava?
Menina- Tinho.
Homem- Você tinha amor por esse Tinho?
Menina- Muito!!!
Homem- Então que bom que ele fugiu!
Menina- Tá maluco?!
Homem- Tô não, vida de gaiola é muito triste, apertada.
Menina- Mas ele era o meu passarinho...
Homem- Tem certeza?
Menina- Certeza de quê?
Homem- De que ele era seu oras...
Menina- Lógico que tenho! Meu pai me deu, eu coloquei nome nele, dei comida, água, carinho...
Homem- Você é do seu pai?
Menina- Cada doido que me aparece...
Homem- Ué, seu pai te deu nome, carinho, água, comida...
Menina- Olha moço, não tô gostando muito dessa conversa não! Vou entrar pra minha casa, com licença!
Homem- Quer ser minha amiga?
Menina- Quê?
Homem- É, minha amiga, o canário não era seu amigo?
Menina- Era.
Homem- Foi embora, não foi?!
Menina- Foi!
Homem- Então...
Menina- Ai Jesus, então o quê?
Homem- Me coloca no lugar dele...
Menina- O Sr não cabe na gaiola.
Homem- É não mesmo! Mas precisa caber na gaiola para ser seu amigo?
Menina- Se não te colocar na gaiola, você vai fugir...
Homem- Ué, o passarinho tava na gaiola e fugiu!
Menina- O Sr tá me irritando.
Homem- Desculpa! Amigos não devem se irritar.
Menina- O Sr não é meu amigo!
Homem- E se eu fosse um gato? Você ia me colocar na gaiola? Gatos não gostam de gaiolas.
Menina- Acontece que o Sr não é um gato, o Sr é um ser humano, pelo menos parece...
Homem- Me chama de você!
Menina- O “você” pode me deixar em paz?
Homem (dá um beijo na mão da menina)- Como cê chama?
Menina- Catarina.
Homem- Te amo sabia?!
Menina- Já?!
Homem- Você conhece o Japão?
Menina- Nunca saí da Vila da Goiaba.
Homem- Eu podia te colocar no meu lombo, e voar por aí, conhecer o mundo!
Menina- Nem asa você tem!
Homem- Cê que pensa!!!
Menina- Ai, tá bom! O Sr “você” que eu não sei o nome, aliás, como cê chama?
Homem- Achei que não ia perguntar...
Menina- Tô perguntando!
Homem- Isso na verdade pouco importa, me chama de amigo. Sabia que “saudade” é uma palavra que só existe no português?
Menina- Nas outras línguas eles não sentem saudade?
Homem- Acho que não, ou se sentem, não sabem como chama.
Menina- Estranho né?! Será que a gente tem algum sentimento sem nome?
Homem- Com certeza! Um monte. Felicidade por exemplo, é uma palavra muito complexa, se somar todos os tipos de felicidade que já senti deve dar umas trinta.
Menina- Ué, mas não é tudo felicidade?
Homem- É, mas é diferente. Por exemplo, a felicidade que você sente quando ganha um doce, não é a mesma de quando você tira um dez na escola.
Menina- Pra mim, isso tudo era alegria... Felicidade pensei que fosse para algo para a vida toda.
Homem- Você está feliz agora?
Menina- Não, pq meu canário fugiu...
Homem- Então, não é pra vida toda...
Menina- Lascou, se a felicidade fugiu com o Tinho, não encontro mais?
Homem- Acho que encontra...
Menina- Me ajuda a achar, deve estar escondida embaixo de alguma lajota na rua.
Homem- Ou em algum tomate de uma pizza de marguerita.
Menina- Tô com fome!
Homem- Viu?! Já esqueceu de procurar, essa acho que deve ser a forma natural de achar...
Menina- Nossa! Você “acha” muitas coisas.
Homem- Já pensou o quê vai ser quando crescer?
Menina- Já, me fazem essa pergunta todos os dias, e ficavam tão decepcionados por eu não ter uma resposta, que tive que encontrar uma; motorista de ônibus!
Homem- Pq?
Menina- Assim nunca fico sozinha, e tem sempre alguém diferente para conversar.
Homem- Mais ou menos né?! Tem ônibus que de domingo fica vazio...
Menina- Não tinha pensado nisso, mas não pretendo trabalhar aos domingos não! Domingo, minha avó sempre diz que é dia de almoçar com a família.
Homem- E quando toda sua família morrer? Domingo vai ser dia de quê?
Menina- Vai continuar sendo dia de família, só que sem família... Ah, mas aí não tem problema, eu faço outra família!
Homem- Só para não mudar o nome do dia?
Menina- Não, para manter a tradição.
Homem- Tradição... Também é uma coisa relativa, cada canto tem uma... Tem canto do mundo que de tão frio, no inverno as pessoas não saem de casa.
Menina- Nem para ir à escola?
Homem- Nem! As escolas fecham!
Menina- E onde as crianças aprendem?
Homem- Na tradição, dentro de casa.
Menina- Você acredita na vida depois da morte?
Homem- Eu acredito na vida, nessa vida!
Menina- De onde você vem?
Homem- Dessa vida.
Menina- Você é misterioso, me dá medo!
Homem- É... O oculto assusta mesmo... posso ir embora se quiser...
Menina- Não! Agora já me acostumei com você!
Homem- Não fico nos lugares por costume, fico por apreço!
Menina- E se eu te apreciar, e você se for? Como o passarinho?
Homem- Se perder tempo pensando nisso, vai me apreciar na lembrança somente!
Menina- Isso é triste! Quando você vai embora?
Homem- Nem sei se sou eu que vou... Agora, mesmo que pra você só por costume, tenho vontade de ficar!
Menina- (...) (pausa) Já está com vontade de ir?
Homem- Se você ficar me lembrando da partida, será impossível ficar...
Menina- Tô confusa!
Homem- Normal, você está amando...
Menina- Você é bem prepotente!
Homem- Só sei o meu lugar.
Menina- Voltou a me irritar!
Homem- Então quer dizer que não estava mais te irritando?!
Menina- (pausa) (...)
Homem- Preciso ir, quero ainda hoje boiar no mar morto, comer uma massa feita por algum chefe italiano, e ajoelhar diante de algum templo por aí...
Menina- Injusto!
Homem- Eu volto, acho...
Menina- Te amo!
Homem- (sorri)
Menina- Não sei quase nada sobre você, e já vai embora...
Homem- Perdeu tempo demais me repelindo...
Menina- Leva essa gaiola de presente!
Homem- Levo! Será meu amuleto de sorte!!!

Beija a testa da menina e vai embora, carregando seus tiques de passarinho.

Um comentário:

  1. "Se um dia você for embora,
    não pensem em mim,
    eu não te quero meu.
    Eu te quero seu"

    ResponderExcluir